Somente quem passa pelo gelo da dor chega à inocência do amor…
Esta é talvez das maiores descobertas que fiz nos últimos tempos. Considero-a como uma boanova, um novo ensinamento para a vida, uma regra de ouro a não esquecer. É impressionante como depois de ter gelado o meu coração, de dor e (des)amor, consigo hoje olhar para o amor da forma mais inocente. Enquanto estou parado num semáforo olho para o lado e vejo à porta de um hotel um casal de namorados a beijarem-se… devagar, como se não existisse tempo. Ao meu lado está sentada a Rita, linda de morrer, e fala abertamente sobre o último projecto que tem em mãos para Lisboa...
Seis da tarde e recebo uma mensagem no meu telemóvel: “Olá Sebastião, tenho bilhetes p uma peça hoje no coliseu, já tinha comprado e n sei o q fazer… queres ir? Bjs Rita”. Liguei-lhe e a Rita está docemente simpática mas suficientemente distante. Explicou-me que já tinha comprado os bilhetes para “A Bela Adormecida” e que gostava muito de ir comigo, afinal tinha sido essa a sua intenção quando comprou os bilhetes. Agradeci mas recusei… Não tem lógica depois daquela tarde em Belém ir a um bailado com ela... Se ainda fosse com a Filipa… Mas não, isso ia ser o mesmo que tirar com uma mão e dar com a outra. A Rita insistiu e explicou-me que se eu não fosse, ela também não iria e iriam-se perder dois excelentes lugares. Que raiva! Não me apetece nada ir (pelo menos com ela…) e ao mesmo tempo o meu coração de manteiga é incapaz de dizer que não e fazê-la perder o dinheiro dos bilhetes. Vou ter de dizer que sim: “-Ok, eu passo por tua casa às 8 e 45… ” Fui tomar um banho, fiz novamente a barba e enquanto visto o fato escuro e uma gravata estou completamente em branco. Não quero ser calculista e pensar como irá ser esta noite, o meu pensamento está dirigido para a história da Bela adormecida e até escolhi o perfume adequado para passar discreto e não despertar o olfacto de nenhuma “cinderela” mais afoita… Hoje irei encarnar no espírito de Manuel Maria Carrilho mas sem Bárbara Guimarães... um abrupto mas sem viagens para Bruxelas.
Além do frio, Lisboa está encharcada... As luzes e a água desfocam as imagens e Lisboa fica distorcida ao meu olhar cultural. Cheguei à porta da casa da Rita e dei-lhe um toque para sair. Não me apetece ir cumprimentar os pais e muito menos a empregada nazi! A luz da entrada acendeu-se e num segundo a porta grande de madeira verde abriu-se… Fico parado a olhar e sem querer tenho a primeira visão da Cinderela. A Rita está linda num vestido preto comprido que é rapidamente coberto por um sobretudo que a empregada lhe coloca nas costas. Abro-lhe a porta e a Rita faz-me um sorriso e apressa-se a dar-me um beijo na cara carregado pelos lábios: “-Estás lindo Sebastião!” Nem me deu hipótese para elogiar a visão que me proporcionou e rapidamente puxou um lenço para me limpar a face marcada pelo batôn dos seus lábios lindos e bem definidos. A conversa foi de circunstância e conseguimos comportarmo-nos como dois adultos civilizados que sabem terminar uma relação. A Rita conseguiu colocar-me de tal forma à vontade que sem querer inicio uma viagem imaginando como seria se eu não tivesse tomado aquela decisão. Vejo o casal de namorados... de repente esqueço-me dos perigos do amor e vejo-o como sinal de estabilidade e conforto.
A noite estava radiante e mal chegámos ao Coliseu lembrei-me que nem Tchaikovsky nos seus sonhos longínquos poderia imaginar que algum dia iria proporcionar noites tão belas longe da elite de S.Petresburgo. Lisboa está engalanada para assistir a este espectáculo intemporal e a entrada do Coliseu está repleta de vestidos compridos e fatos caros. Para os que vivem fora desta cidade, é quase a mesma sensação quando o circo desce à cidade... mas com outro nível! A Rita continua fascinante e a sua beleza ofusca-me por vários instantes o meu pensamento. Ela não desiste daquele sorriso e começo cada vez mais a ficar baralhado. Primeiro acto de sonho, segundo acto de choro. Um bailado clássico é mesmo assim e só me recordo dos meus amores de Romeu e Julieta. Refiro-me à Catarina com quem mantive a “tal” relação que abala os homens durante vários anos.
Assim que saímos achei simpático convidar a Rita para comer qualquer coisa e subimos ao Chiado onde descobri uma daquelas mercearias francesas. O lugar ideal para uma comida rápida de bom gosto e uma conversa simples como acompanhamento. Receita simples, sem complicações culinárias. Sentámo-nos junto à montra e, enquanto via os carros a passar na rua, a Rita pergunta-me: “Está tudo bem contigo querido?” Insiste-me em tratar por “querido” e a verdade é que eu gosto! A sua cara está preocupada e eu demovo-a com um sorriso… “-Perguntei-te se estavas bem Sebastião, não me respondeste…” A Rita sabe como me deixar embaraçado. “-Claro que sim, está tudo óptimo… mas sabes como é, estas peças deixam-nos muito para pensar....” Estivemos perto de duas horas a conversar, mais uma vez a Rita mostrou que tem uma cultura à minha altura (e à altura de qualquer mesa!) e que facilmente acompanha os meus raciocínios. Não consigo definir esta situação e muito menos quantificar ou qualificar o que estou a sentir senão um aperto por tamanha indecisão. Hoje já me lembrei da Filipa, sonhei com a Rita e chorei pela Catarina. Ainda falta alguém?
Paguei a conta com pressa e fui levá-la a casa. Acho que as melhores decisões são aquelas que fazemos num impulso e foi isso que fiz. Parei à porta da casa dela e quando a Rita se preparava para encostar-se à porta, e continuar por mais um pouco a conversa, acende-se uma luz da casa: “-São os meus pais, tenho de entrar…” Percebi que os pais não tinham gostado que ela fosse comigo ao bailado e que num gesto compreensível tornei-me em "personna non grata" na família Guimarães. Deu-me um beijo e quando estava de costas disse-me num ápice: “Liga… a sério!” Claro que irei ligar… mas a quê? E a quem? Estou tão confuso que não sei em quem pensar e, embora ame tanta gente, não consigo apaixonar-me por ninguém. Será isso a inocência do amor? Espero que sim, não suportaria magoar-me outra vez…
NOTA: Já existia o prato do dia, a promoção do dia... mas hoje descobri que existe também um blog do dia. E somos nós...